Para quem não leu o livro em questão, subitamente uma estranha doença torna as pessoas cegas. Cem por cento de escuridão. Em casa, no metrô, no trabalho, todos vão ficando cegos e, a partir de um primeiro hospedeiro, a doença da cegueira se dissemina sem discriminar idade, raça ou sexo. Poucas pessoas tem o desprazer de continuar enxergando. Não é fácil enxergar porque as coisas vão de mal a pior tão rápido desde que a doença chegou.
Como poucos enxergam, ocorre o fim da propriedade privada, o abandono das forças de segurança e o inusitado das situações vividas pelos "agora-cegos" vai sufocando a moral e libertando os monstros interiores. Ninguém se apieda de ninguém, impera o terror de ditadores em diferentes pontos da cidade, onde lixo se empilha e as lojas são saqueadas...
O filme baseado no livro vai ficando sórdido a medida em que as poucas pessoas estão ainda enxergando se tornam despóticas, tiranizam os outros, submetendo as mulheres idosas e adolescentes ao estupro e a servidão humana e os homens à respeitar uma hirarquia sem mérito, mantida pelo oportunismo e a depravação.
Tornam-se, esses líderes de última hora, ladrões discriminadores por causa de preconceitos, sabotadores na distribuição de suprimentos, excluindo rivais vítimas de cegueira de sua dignidade. Dominam as fontes de informação. Dominam os centros de suprimentos. Desfrutam o poder total, mas sem merecimento.
Sim, a raça humana em seu estado puro - um ser fazendo parte da cadeia alimentar do outro.
Nos últimos tempos de eleição presidencial, vimos uma forma de contágio semelhante ocorrer no Brasil. Enxergar alguma coisa no cenário político nebuloso se tornou difícil pelas fake news divulgadas quase diariamente pelos que se arvoravam (e continuam assim) em formadores de opinião. Tiram proveito da cegueira.
Assessorias de candidatos foram montadas no propósito de desconversar a verdade, mastigar a mentira, não esclarecer nada de útil e deixar o eleitor já afoito por acreditar nesse ou naquele partido se chocando contra parentes e amigos.
Às vezes vi pessoas se chocando contra a sua ideia do bom ou mal, do certo e do céu, do errado e do inferno, do político público, do privado ou civil. Virou tudo uma cegueira só.
Onde achar a verdade? Recorri várias vezes ao mesmo Jesus, que ao ser indagado por Pilatos sobre o que é a verdade, calou-se simplesmente.
"Então Pilatos questionou a Jesus:
"Que é a verdade"
E assim que disse isso, saiu de novo
para onde estavam reunidos os judeus
e disse-lhes: Não encontrei
qualquer falta neste homem"
. Ora, como poderia ver? Ele era cego em sua máscara social (livro de João).
Pergunto sobre o amor ausente ma cegueira. Nessa rigidez de acusar. Como puderam tantas pessoas dizerem tantas mentiras por tanto tempo em direções opostas? Estaríamos nós todos cegos? Para Saramago, sim. Não foi a doença da cegueira que atingiu os homens, mas a constatação de que eram cegos desde sempre (apenas viam).
“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso, Diz. Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”(trecho do livro).
Mesmo a vitória legítima de Lula nas urnas ficou encenada como mentira. Ainda não queriam enxergar a democracia. Ainda preferiam militares nas ruas com baionetas, tortura, gente sumida em calabouços e corrupção coberta de (advinhem!) mais cegueira e sigilo.
Onde está aquele que enxerga? Onde a sensatez? Quando acabará o surto da doença? Quando as fake news serão reconhecidas e o tirano desmascarado? Sim, um dia todos acordarão enxergando a destruição
da teia social. Mas ela já estava rompida antes de Lula. Foi rompida pela falta de amor.
Acontece no filme baseado no livro. Resta saber se acontece na vida real, enxergar que esse país é lar para todas as etnias, origens, gêneros, tendências religosas e escolhas pessoais sobre corpo e sexo.
Pois o oposto seria prolongar o indizível estado de despotismo a que nos levaram os poderosos em sua cegueira. Cegos, guiando uma nação que em sua metade escolheu ver, mas descobriu que ver sempre é mais dolorido.
Por Rosemari Gonçalves (psicóloga e psicopedagoga, jornalista e escritora. CRP 16/6679)
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